Ontem aconteceu a votação relativa ao processo de impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados. Com a aprovação, o próximo passo é a votação no Senado. Dentre outras coisas, o que chamou a atenção foram as justificativas dos deputados. Por isso, decidiu-se realizar uma análise a partir de um viés argumentativo (oriundo da retórica). Para uma visualização dos discursos analisados, utilizam-se dois grafos gerados a partir da análise de conteúdo e de co-ocorrência. Os grafos aqui apresentados foram apropriados do post anterior sobre o tema (da Raquel Recuero, utilizando os dados do Felipe Pacheco).
Os votos sim: “pelo meu estado, pelo Brasil, por Deus, pelos meus filhos, pela minha família…”
Entre os deputados presentes, 367 votaram “sim”. Na Figura 1 é possível ver como foram realizados os discursos a favor do impeachment. Quanto maior o conceito, mais frequente ele é. No centro do grafo estão os que foram mais citados conjuntamente e mais afastados do centro estão os menos citados.
Figura 1: Conceitos dos deputados que votaram “sim”
O que se percebe é que no núcleo dos discursos estão os conceitos relacionados com seus estados de origem, com o Brasil, com o povo, e com as suas famílias. Há ainda com alta frequência a referência a Deus e aos partidos dos deputados. Também se pode citar o grupo laranja (os conceitos estão separados em grupos de cores conforme sua modularidade – frequência com que aparecem juntos), onde estão elementos mais associados ao processo de impeachment, como “responsabilidade” (fiscal) e “crime”.
Se pode concluir, então, que as justificativas dos votos a favor do impeachment possuíam geralmente um cunho mais pessoal do que processual. Com isso, é possível questionar o tipo de argumentos foram utilizados pelos deputados.
Podemos citar primeiramente a ligação simbólica, descrita por Chaïm Perelman (1993). A ligação simbólica é um tipo de argumento que relaciona o símbolo com o que ele evoca. Assim, os deputados se construíam como símbolos: do seu estado, da sua família, de seus eleitores, do Brasil e, até mesmo, de Deus. Isto porque muitos dos discursos eram iniciados com estas referências: “Pelo meu estado, pela minha família, pelos meus filhos…”. Isto pode ser visto nos dois exemplos a seguir (optou-se por citar deputados gaúchos em função da proximidade geográfica):
Afonso Hamm (PP-RS.) : Em nome do povo gaúcho, povo do meu Estado, em nome do povo brasileiro, para votarmos a favor da mudança, a favor da esperança, sim ao impeachment!
Osmar Terra (PMDB-RS.) : Pela minha família, minha esposa, meus filhos, pelas famílias brasileiras, pelas crianças do Brasil, pela minha Santa Rosa, meu povo do Rio Grande, pelo Brasil, é sim, Sr. Presidente!
Os exemplos acima ainda podem ser associados a outro tipo de argumento, que é construído como falácia (argumentos que violam alguma regra lógica – seriam os argumentos que buscam mais enganar do que persuadir). É o argumento/falácia ad populum (WESTON, 2009). Esta falácia busca apelar para a emoção das massas – está, portanto associada ao que Aristóteles chama de pathos: despertar emoções no seu auditório. Quando os deputados justificam seus votos pelo “povo”, estão claramente se apropriando deste argumento, ou seja, os deputados não estão apenas representando simbolicamente o povo, estão também realizando a vontade dele.
Os votos não: “Contra o golpe, a favor da democracia”
O voto “não” foi realizado por 137 deputados. Como pode ser visto na Figura 2, alguns dos conceitos centrais são os mesmos dos votos “sim”, como “povo” e “Brasil”. Outros, porém, são diferentes e marcam a gênese dos discursos realizados pelos deputados que votaram “não”: “democracia”, “golpe, “respeito” e “constituição”.
Figura 2: Conceitos dos deputados que votaram “não”
O que se percebe, então, é que o núcleo argumentativo se altera na maior parte das situações. Os deputados que votaram “não” questionam a legalidade do processo de impeachment. As justificativas, portanto, estão bem mais relacionados com elementos processuais, que apelam aos conceitos “democracia”, “golpe” e “constituição” para reforçar a afirmação de ilegitimidade do processo. Algumas referências a “Cunha” também são realizadas, questionando a credibilidade do deputado para conduzir a votação e presidir a Câmara. Também se pode perceber a referência ao “povo” e ao resultado das “urnas” como argumento para a ilegalidade do processo. Isto pode ser visto nos três exemplos a seguir:
Henrique Fontana (PT-RS.): Contra a conspiração e a corrupção representadas por Eduardo Cunha e Temer; contra o golpe; em defesa da democracia e do respeito ao voto do cidadão brasileiro, eu voto com toda convicção não a esse golpe, não a esse impeachment!
Marco Maia (PT-RS.) : Pelos trabalhadores e trabalhadoras do nosso Brasil, pela democracia e pelo respeito ao voto soberano do povo brasileiro,que elegeu a Presidenta Dilma com 54 milhões votos, o meu voto é não a esse golpe
Pepe Vargas (PT-RS.) : Contra o acordão de Eduardo Cunha, Michel Temer e Aécio Neves, que querem abafar o combate à corrupção, contra os golpistas, que não prezam a democracia e os direitos dos trabalhadores, pela Constituição, que jurei cumprir, pela democracia e pela legalidade, meu voto é não ao golpe.
Há um argumento básico nas justificativas pelo “não”: o silogismo, argumento dedutivo clássico, descrito já por Aristóteles. Ele pode ser observado pelo modus tollens (WESTON, 2009), que funciona pelo modelo: Se a, então b; b é falso; logo, a é falso. Na situação analisada pode ser visto assim: Se há crime, o impeachment é legítimo; não há crime; logo, o impeachment é ilegítimo (golpe). Esta é a base para a presença dos conceitos “democracia”, “constituição”, “golpe”, dentre outros.
Também é possível citar a ligação de coexistência (PERELMAN, 1993), quando relaciona um indivíduo e seus atos. Ela está muito próxima do argumento em forma de falácia ad hominem (WESTON, 2009). A ligação de coexistência (como argumento) ou a falácia ad hominem aparecem quando a credibilidade de Cunha é questionada, assim como quando outros nomes são citados (Temer e Aécio, por exemplo). Se Cunha não tem autoridade para presidir o processo, ele seria em sua base ilegal é o modelo de argumentação. A solução entre ligação de coexistência ou falácia ad hominem se dá a partir da maneira como Cunha é considerado: se, de fato, as acusações contra ele possuem fundamento, aqui há a ligação de coexistência (como argumento real); por outro lado, se Cunha é inocente do que é acusado, então haveria apenas a falácia ad hominem.
Por fim, mais uma vez é possível citar, como nas justificativas do “sim”, a ligação simbólica e a falácia ad populum. Novamente os deputados se colocam como representantes simbólicos do povo, agora fazendo referências mais diretas aos “trabalhadores”, às “mulheres”, “reforma agrária” e, novamente, aos seus estados.
O ad populum também pode ser observados nas diversas evocações aos resultados das urnas. A justificativa é que se o povo elegeu Dilma, então a vontade do povo deve ser respeitada e ela deve ser mantida no seu cargo.
Pelo sim, pelo não, o que se entende?
O que se pode concluir é que, de modo geral, os deputados evocaram sua posição como representantes do povo e dos seus eleitores/estados. Os que votaram “sim” ainda buscaram referências a Deus e suas famílias com grande frequência.
Também se vê que os argumentos do “sim” estavam mais vinculados a elementos pessoais, enquanto os do “não” traziam referências mais diretas ao processo do impeachment, questionando o próprio processo e também Cunha, responsável pela sua condução.
No geral, os dois lados utilizaram o argumento/falácia ad populum, justificando que estavam seguindo a vontade do povo, para retirar Dilma de seu cargo (no caso do “sim”) ou para manter a voz das “urnas” e não permitir o “golpe” contra a “democracia” (no caso do “não”).
Referências
ARISTÓTELES. Retórica. 2 ed. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
PERELMAN, Chaïm. O Império Retórico: Retórica e Argumentação. Trad. Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio. Porto: Asa, 1993.
WESTON, Anthony. A construção do argumento. Trad. Alexandre Feitosa Rosas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.