Pesquisa e post por Letícia Schinestsck
A publicação de um vídeo apresentando imagens de uma adolescente desacordada, nua e cercada por homens, no Rio de Janeiro, viralizou nas redes sociais no dia 25 de maio. A jovem, ao prestar depoimento à polícia, afirmou ter visto, ao acordar, 33 homens ao seu redor. Com o caso, houve grande repercussão sobre o ocorrido, que levou a manifestações online e presenciais de mulheres e também homens em todo o Brasil e até internacionalmente.
Levando em conta que um dos focos de pesquisa do Grupo MIDIARS, o discurso da violência simbólica e de gênero, buscamos apresentar neste post a síntese de uma investigação sobre o movimento que emergiu na rede por meio da hashtag #EstuproNãoÉCulpadaVítima, que teve forte apoio e solidariedade à menina e a casos diários de violência contra a mulher, e segue acompanhando manifestações online sobre assédio às mulheres. O compartilhamento das imagens causou revolta e indignação, mas também contou com comentários que refletem a mulher, vítima, como culpada de seu próprio assédio, responsável pelo que acontece nesses casos. Assim, objetivamos coletar e apresentar ambos e demais discursos para entendermos em parte como foram constituídos os tweets em torno deste assunto e como está disposta a violência discursiva contra as mulheres neste caso. Também nos interessa observar os discursos dominantes em cada grupo e identificar os pares de palavras que aparecem mais juntos em cada cluster e qual a sua frequência.
Para isso, analisamos o uso da hashtag no Twitter no dia 27 de maio, com dados coletados às 18h30min. São observações relativas somente ao momento da coleta e aos 17.578 itens analisados, não generalizando todos os dados relativos à tag em nossa conclusão. O método de análise que utilizamos foi, resumidamente, a coleta pelo NodeXL Pro, a formatação e filtro de palavras pelo Textometrica, e a leitura dos dados e formatação da distribuição dos grafos pelo Gephi. A partir dos grafos prontos através desses softwares pudemos observar a aproximação de palavras e entender como os termos se conectaram entre si nos discursos em torno da hashtag naquele momento na rede.
Separação por Clusters
A primeira imagem apresenta a separação dos grupos discursivos por clusters, ou seja, por aqueles atores que conectam outros atores dentro da rede. (clique na imagem para ver maior)
Figura 1. Separação dos grupos discursivos
Os grupos separados em cores concentram discursos que, apesar de pertencerem a grupos distintos, estão interconectados. Observando os dados no NodeXL, a maior parte dos grupos forma um misto de relatos de situações vividas por mulheres e suas experiências individuais e coletivas que apontam o assédio e demonstram revolta e desprezo para com opiniões que têm emergido na rede, aquelas que tentam justificar o que aconteceu pelas atitudes e estilo de vida da própria vítima. Ainda assim, há a separação de grupos que defenderam a causa da menina, do feminismo, protestando contra o machismo e a cultura do estupro; e também aqueles que fizeram o oposto, expondo a adolescente como culpada pela situação, ou então emitindo opiniões contrárias às do movimento feminista na rede.
Organizamos uma tabela com as principais palavras usadas em cada grupo, seguida do número de vezes em que foi utilizada a fim de facilitar a visualização dos discursos predominantes em cada cluster. (clique na imagem para ver maior)
Percebe-se o quão próximos se encontram as expressões, embora façam parte de grupos distintos. A discussão dos grupos parece girar em torno das causas de estupros e as justificativas usadas pelos outros para abrandar ou legitimar a violência, como o par de palavras do G2 (roupa + curta) e G3 (justifica + estupro). O destaque é para a mobilização que dá nome à hashtag #EstuproNaoÉCulpaDaVitima que, no G1, apresenta informações específicas do caso do estupro no Rio de Janeiro, como a dupla “30 + homens” e o que diz respeito ao culpado, lembrando que há uma tendência de culpabilizar os outros e escolher sua sentença junto ao coletivo, como veremos ainda. No G4 também é possível identificar o debate em torno de “causas + estupro”. Já o G5 apresenta uma situação específica de um tweet publicado pelo Usuário7 e repudiado por muitos internautas, como é possível visualizar no grafo.
Um exemplo do grupo discursivo que defendia a menina foi o tweet de @Usuário1, que tem mais de 620 mil seguidores no Twitter. (clique na imagem para ver maior)
O discurso de @Usuário1 é exemplo do valor que predomina na rede no momento da coleta. O G1, representado na imagem em azul enfatiza a discussão em cima da cultura do estupro; o G2, azul claro, lembra a questão da roupa e de bandeiras levantadas por deputados polêmicos como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano, que foram criticados pelo repúdio aos homossexuais e conformidade com o caso em que uma menina de 16 anos foi supostamente agredida sexualmente por, no mínimo, 30 homens. “@UsuárioX: Ninguém MERECE ou PEDE pra ser estuprada!!! Não existe JUSTIFICATIVA pra essa catástrofe. Deixa de ser IMBECIL!!! #EstuproNaoÉCulpaDaVitima”, diz um internauta. Outro usa o próprio caso da jovem carioca para expressar sua indignação “@UsuárioY: “Se ela era piranha o problema é dela, nada justifica um estupro, nem 1 nem de 33 homens” -Meu Pai! #EstuproNaoÉCulpaDaVitima” Cada um a sua maneira, mas todos os clusters naquele momento pareciam sustentar a ideia de que nada justifica o estupro.
Com o NodeXL tivemos uma ideia do tipo de discurso que circulava em cada grupo no momento da coleta. Ao todo foram 224.994 palavras, sendo as principais, como já havíamos apontado, a hashtag #EstuproNãoÉCulpaDaVitima (11.275 vezes), seguido das palavras “estupro” 2.979 vezes), “pode” (1.769), “nada” (1.587 vezes) e “justifica” (1.284), reforçando nossa conclusão de que a rede replicava tweets e discursos que desconstruíam qualquer tipo de justificativa para o ato.
Com a breve visão geral sobre a separação dos grupos discursivos na rede, passamos a observar a rede em sua estrutura de conteúdo. Para isso, apresentamos então os grafos com representações das palavras mais citadas, como elas co-ocorrem e se conectam na rede. Nesta etapa, analisamos o mesmo corpo de dados, isto é, os 17.578 tweets publicados com a hashtag #EstuproNãoÉCulpaDaVitima.
O primeiro grafo (clique na imagem para ver maior) representa os dados de co-ocorrências de palavras ligadas a #EstuproNãoÉCulpadaVítima, no momento da coleta em 27 de maio: (clique na imagem para ver maior)
Grafo 1. Distribuição das co-ocorrências de palavras
Ressaltamos em verde a forte conexão entre as palavras “homens” e “medo”, e vemos em laranja “mulheres” e “estuprada”, também relacionadas a “roupa” e “estupram”. Em verde, “medo” também é ligado a “sozinha”, apresentando o sentimento comum entre muitas mulheres quando precisam andar sozinhas na rua em horários e locais não propícios à segurança. Um exemplo deste discurso é o retweet:
“Vcs homens nunca vão entender o medo de quando um carro começa a diminuir a velocidade e para pra falar gracinha. #EstuproNaoÉCulpaDaVítima”.
Em roxo, o termo “cultura” é associado a “justifica”, com discursos que entendem que apesar da cultura presente na sociedade, nada serve como justificativa para o estupro. Muitas figuras públicas, especialmente políticas, se posicionaram contra a cultura do estupro. O deputado Jean Wyllys, por exemplo:
“RT @jeanwyllys_real: Manifesto contra a cultura do Estupro: não se cale diante de uma violência. https://t.co/4GI4zzejZ7 #EstuproNaoÉCulpaDaVitima”
E também a Presidenta Dilma Rousseff, que através da hashtag e de um link para o Facebook do perfil de Dilma Bolada, personagem satírico da mesma, buscou esclarecer o que é, afinal, a cultura do estupro:
“RT @diImabr: O que é a cultura do Estupro? https://t.co/tF9Uk9xC4S #EstuproNaoÉCulpaDaVítima”.
Para a melhor visualização dessas conexões discursivas, apresentamos um grafo normalizado, criado a partir dos mesmos dados, porém com distribuição diferente de nós: (clique na imagem para ver maior)
Grafo 2. Distribuição das co-ocorrências de palavras em 27/05/2016
Observando a estrutura dos grafos, observamos que existe forte relação entre discursos que associam a questão das vestimentas com estupro de mulheres. Esse tipo de tweet/comentário dá manutenção a valores historicamente construídos e transmitidos pelas relações sociais, seguindo o pensamento de Bourdieu. Ilustramos essa ligação com o tweet a seguir:
“Meu corpo nunca pediu pra ser estuprado e eu uso a roupa que eu quiser! #EstuproNaoÉCulpaDaVitima”.
Mais aparente no segundo grafo, percebemos em roxo a relação de “Spotify” com “Vítimas”, intermediada pela hashtag em questão. Essa conexão entre os termos se explica pelo lançamento de uma playlist feito pelo aplicativo Spotify no qual o nome de cada música, quando lido na sequência, formava uma mensagem contra o caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro. (clique na imagem para ver maior)
A discussão sobre as vítimas aparecem em manifestações como no tweet a seguir:
Também em roxo, a ocorrência de “Ajuda” se refere principalmente a um acontecimento em que o usuário publicou a opinião que dizia preferir o termo “Sexo Surpresa” a “Estupro” e depois deletou, causando muita indignação em perfis femininos, que replicaram o que foi dito junto a um novo tweet do usuário “Se é pra ajudar, ajuda de verdade. #EstuproNaoÉCulpaDaVitima”. Muitas usuárias questionavam o jovem, o qual, pelas acusações, parecia manter uma imagem pública com vídeos na própria plataforma, se era desta forma que ele estaria ajudando a situação. Cabe aqui observar que este foi um caso de um indivíduo que teve seus dizeres passados expostos em forma de provas (printscreen/imagem de tela), mesmo após ter deletado da internet a publicação em questão.
Num intermédio entre os grupos em laranja e roxo, o conceito “estupram”, na sua própria forma ortográfica – terceira pessoa do plural – indica do que se fala. Quem estupra: “eles” estupram, pois, segundo os tweets da coleta analisada, “Roupas curtas NÃO estupram”. Em razão do que observamos, nem bebidas ou horários, os que estupram são pessoas e olhares que intimidam as mulheres, instigadas a se posicionarem na rede sobre o acontecimento que, apesar de ter origem no que aconteceu a uma jovem, é realidade que envolve a identidade e a história construída por todas elas.
Ao mesmo tempo em que a rede atua para agrupar movimentos e articular causas como essa, em que os direitos da mulher é defendido, também é palco da loucura coletiva, da qual Ronson fala. São situações em que os indivíduos perdem totalmente o controle e uma espécie de loucura contagiosa toma os usuários. Esse tipo de comportamento tende a facilitar os julgamentos e manifestações tão violentas como a causa inicial. O estupro coletivo de que falamos serviu como o pontapé inicial para um amplo debate sobre o tema estupro na sociedade brasileira, especialmente alertando para a existência de uma “cultura do estupro” que, embora sentida na pele diariamente por muitas mulheres, nem sempre são reconhecidas como um tipo de violência e assédio.
Finalizamos esse post com o que foi dito pelo mesmo autor, Ronson, em seu livro Humilhado: “No Twitter, tomamos nossas próprias decisões sobre quem merece ser destruído. Formamos o próprio consenso, e não somos influenciados pelo sistema de justiça criminal ou pela mídia. Isso nos torna assustadores.” (P.200).
Independentemente do nível do julgamento e de cada usuário, que sugere múltiplas vinganças para o acontecimento, destacamos a maneira com que a situação foi recebida e reverberada pelos usuários. Vemos que as redes sociais têm servido como palco para que acontecimentos assim, delicados, porém frequentes e ainda pouco debatidos ganhem espaço. A partir de uma mesma hashtag, tivemos acesso à múltiplas narrativas e valores de distintos coletivos que, apesar de singulares estavam representados pela hashtag, que Malini e Antoun (2013) chamam de assinatura. Um ponto comum, uma identidade/assinatura única, que ramifica-se e deixa à mostra, pela rede, a diversidade de narrativas existentes.
Podemos dizer que, ao menos naquele momento, a rede não se mostrava passiva e conformada com o que estava acontecendo. Pelo contrário, o estupro coletivo foi somente o gatilho para que #EstuproNãoÉCulpaDaVítima fosse apropriada e a cultura do estupro na sociedade atual fosse concebida como uma realidade e questionada como tantos outros fatos de interesse público nos quais a rede serve como ponte, como o hub que junta e organiza as informações e os pontos de divergência existentes nas relações atuais.
Metodologia
Coleta: NodeXL
Formatação e filtro: Notepad++ e Textometrica
Formatação e análise: Gephi